9/09/2019

Vale do Contestado, uma morte anunciada, em julho de 2019, pelos que não aceitam a existência da cultura cabocla

Por Nilson Cesar Fraga
A segunda quinzena de agosto de 2019 foi marcada por muitas atividades socioculturais, artísticas e esportivas no município de Lebon Régis – Coração do Contestado. Começou com a 2ª Cavalgada Caminhos no Coração do Contestado, composta por mais de 70 cavaleiros e amazonas, seguida pela 1ª Caminhada Ecológica e Cultural no Coração do Contestado, tendo recebido mais de 200 caminhantes e culminou com a realização da V Semana do Contestado, cuja temática central foi “O Monge Profeta João Maria no Coração no Contestado”. Esses eventos receberam mais de seis mil pessoas entre 13 e 25 de agosto de 2019, sendo a maioria de jovens e crianças das redes estadual e municipal de educação. Tais eventos fizeram com que este município realizasse a Maior Festa Cabocla do Brasil, repercutindo em toda a região e, mesmo, fora do Estado. As Semanas do Contestado são realizadas desde 2015, pela Associação Cultural Coração do Contestado, Observatório da Região e da Guerra do Contestado, Prefeitura Municipal de Lebon Régis, Comunidade Escolar e Paróquia de Santo Antônio de Pádua, tendo como objetivo o resgate e a salvaguarda da cultura cabocla no município e na região do Contestado.
São cinco anos de realização ininterrupta das Semanas do Contestado em Lebon Régis, congregando milhares de pessoas envolvidas na divulgação e fortalecimento de laços com a história e a cultura regional cabocla do Contestado, trazendo reconhecimento, dignidade e aumentando a autoestima da população de origem cabocla na região, no estado de Santa Catarina e, mesmo, do Brasil. Se acrescentarmos os eventos realizados nas demais cidades caboclas da região, desde 2012, quando começaram as rememorações dos centenários da Guerra do Contestado, foram ampliadas as discussões e os movimentos culturais e esportivos sobre o orgulho de se ser caboclo/cabocla, fazendo com que pessoas de diversos lugares do país acompanhassem o rompimento da invisibilidade imposta ao povo caboclo por meio das redes sociais que possuem grande papel de disseminação de povos e culturas na atualidade. Cidades como Timbó Grande, Calmon, Matos Costa, Bela Vista do Toldo, Canoinhas, Mafra, Caçador, Santa Cecília e Curitibanos promoveram, também, atividades alusivas aos 100 anos da guerra, ampliando o rompimento do silêncio e da invisibilidade deste tema da Serra Acima catarinense, bem como da cultura cabocla que precedeu a colonização europeia no estado.
Há todo um esforço regional para a aceitação de uma cultura cabocla pretérita à Guerra do Contestado e à recolonização das terras caboclas por imigrantes de origem europeia que adentraram a área logo depois da guerra. Mas há, ainda, na região do Planalto Norte e Meio-Oeste catarinenses, desde a primeira década deste século XXI, o esforço de grupos sociais e instituições pelo reconhecimento, pela revalorização e aceitação deste grupo humano –   sua cultura e seu modo de vida –, pelas populações da região e mesmo do Estado.
Os eventos, resumidamente, apontados acima, permitiram romper parte do silêncio e da invisibilidade social da população cabocla, seja nos municípios onde ela se encontra depositada nas periferias das cidades, tais como Caçador e Videira, por exemplo, seja mesmo nas cidades onde a maior parte da população é de fato cabocla. São municípios com baixos índices de desenvolvimento humano – os da região do Contestado –, mas, mesmo nesses, a população de descendência cabocla ocupa espaços menos valorizados na sociedade, sendo a maioria dos pobres e miseráveis da região – as melhores terras e os meios de produção estão centrados nas mãos das elites formadas pelos descendentes dos imigrantes europeus. Em síntese, quanto menos branca a cor da pele do cidadão e da cidadã, mais empobrecido é o habitante do Contestado.
Essa população vive na região geográfica do Contestado e, há até pouco tempo, no Vale do Contestado, região turística oficial do estado de Santa Catarina. Mas o Vale do Contestado não existe mais, foi morto pelo olhar míope e ações de alguns burocratas dos fazeres de políticas públicas da região, pelos que defendem uma Europa em céus da América, uma terra branca e não cabocla. Triste, pelo fato de não entenderem que o turismo, mesmo enquanto produto, precisa ter alma, pois as pessoas viajam para conhecer e sentir a alma do lugar – de lugares com lastro de vidas, enraizamentos e territorialidades, caso contrário, iriam para parques temáticos.
O Vale do Contestado já faz parte do passado, assim como o povo tradicional caboclo da região e da Guerra do Contestado é passado. O Contestado insiste em ser passado. O Contestado pensado pela burguesia catarinense prefere o cheiro do mofo de uma epopeia de miseráveis que atravessaram o Atlântico e são brancos a uma epopeia mais brasileira, que lhes dê lastro, ou um pertencimento real na terra manchada de sangue, que recebeu toda essa gente expurgada “dazorópa”, como diriam os guerreiros caboclos e as guerreiras caboclas nos anos de guerra e resistência pelo direito de viver na sua terra ancestral. As elites, a burguesia e a população colonizada-europeizada regional só veem o Contestado e os caboclos e as caboclas como fatos exóticos e fotografias de um passado que não pode fazer parte da alma do lugar onde vivem – o Contestado existiu, mas não pode existir. O Contestado se resume assim: aqui tudo pertence aos que vieram da Europa e seus descendentes colonizados mentalmente, pois esse chão tradicionalmente caboclo é uma Europa iluminada pelos céus da América, sem que muitos entendam que esta América se estende do norte do Canadá até o sul da Argentina. Nem vamos falar de Abya Yala, seria demais para as mentes que insistem em não se descolonizar.
Tais mentalidades e desconhecimentos, assim como preconceitos, ficaram explícitos no dia 04 de julho de 2019 (ironicamente, a mesma data comemorada como dia da independência durante o período de domínio estadunidense no Contestado), na cidade de Catanduvas (SC), na Assembleia Geral Extraordinária da Instância de Governança Regional do Vale do Contestado, composta de 69 municípios, quando se reuniram representantes das 50 cidades da região para a escolha do novo nome do grupo turístico Vale do Contestado, para atualização do Mapa Turístico Brasileiro de 2019/2021. Conforme a ata desta assembleia, outras nomenclaturas foram propostas para suprimir a denominação Vale do Contestado, a saber, Vale das Etnias, Encantos da Natureza, Vale dos Imigrantes, Caminho do Imigrante e Encantos do Oeste – já estava selada a eliminação da denominação Contestado. Em uma votação final de consenso, o grupo eliminou a Região Turística Vale do Contestado, passando a chamar-se Região Turística Vale dos Imigrantes (ATA DA ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DA IGR DO VALE DO CONTESTADO, 2019, p. 3).
Por ironia ou deboche, consta na última linha da mencionada ata a seguinte frase: sem esquecermos do nosso querido contestado. Estava sepultada a existência do povo tradicional caboclo na sua própria terra e região geográfica – a Região do Contestado, território do genocídio caboclo promovido pela República, por Santa Catarina, pelo Paraná e pelas milícias contratadas pelos coronéis dos latifúndios regionais, agora entregue, definitivamente, aos descendentes de imigrantes europeus que reocuparam as terras caboclas depois do massacre do início do século XX. Pouco mais de cem anos depois da Guerra do Contestado, venceu a soberba e a arrogância dos donos daquele território, os brancos, que querem ser uma referência turística tal qual o Vale do Itajaí e a Serra Gaúcha, ou seja, europeus que comem aipim e bebem chimarrão.
Mas o Contestado seguirá existindo e resistindo, pois, a região é formada por uma população cabocla, cujas raízes mais distantes aparecem em 1542, quando da passagem do explorador espanhol Cabeça de Vaca, e seguiu, depois, fazendo parte do movimento tropeirista, caracterizado como um dos maiores ciclos da economia e da formação territorial de longa duração do Brasil, e se estendeu desde final do século XVII até o século XX. O povo caboclo sobreviveu, ainda, a partir da implantação da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG), cujo capital imperialista estadunidense foi responsável pelo extermínio da maior parte das gentes caboclas daquele sertão que, posteriormente, entregou suas terras para companhias de colonização que trouxeram sujeitos alemães e italianos de colônias sul-riograndeses e do litoral catarinense. Também houve a entrada de europeus da Alemanha, Itália, Polônia, Ucrânia e de outros lugares do Velho Mundo, que adquiriram as terras manchadas de sangue caboclo. Desde então, o povo caboclo segue lutando pelo direito de existir na sua região do Contestado, mesmo estando às sombras da sociedade opulenta regional, nas favelas, em barracos, nos piores lugares da região e, claro, servindo de mão de obra barata para os capitalistas regionais – essa gente preta não pode ser produto turístico regional, pois mancha a falsa Europa do Contestado.
Diante desse cenário de vinculação do trade turístico à colonização europeia catarinense e sulista e em detrimento de outros grupos mais tradicionais, como os caboclos/as da Serra Acima, os/as pescadores/as tradicionais, os/as indígenas etc., que não podem fazer parte da Santa Catarina europeia turística, e no caso do Contestado, sobretudo, a partir da ação de 04 de julho de 2019, demonstramos os estereótipos regionais sobre os descendentes de caboclos/as da região do Contestado que se mantêm secularmente sobre este território cultural, assim como outros povos mais tradicionais catarinenses alijados da existência no mundinho turístico catarinense de sol e mar, neve, festas pseudoeuropeias e outros produtos turísticos de baixa qualidade ofertados pelo Estado.
O vale dos imigrantes, ao se confundir com a região turística do Vale Europeu, se caracterizará como um tiro no pé das pretensões colonizadas dos seus criadores, pois o turista confundirá o vale dos imigrantes com o europeu, pois tudo é fruto da mesma invenção e frustração dessa gente que não aceita a diversidade humana da formação socioterritorial brasileira – gentes de mentes atrofiadas, que negam suas raízes mais profundas e reais.
Não podemos negar que a construção desse território desejado pelo vale dos imigrantes advém de um processo histórico que se inicia com o genocídio do povo caboclo do Contestado, durante a Guerra do Contestado (1912-1916), passando pela recolonização das suas terras por colonos de ascendência branca-europeia e europeus natos e, desde pelo menos 1930, pela negação da existência desse povo, assim como a perseguição e expulsão dos sobreviventes da guerra, chegando aos dias atuais com a inviabilidade dessas gentes caboclas que, em alguns casos, não chegam a servir como mão de obra barata para as indústrias, agroindústrias, agricultura de plantation etc., e vêm sendo substituídas pela mão de obra do Paraná e Mato Grosso do Sul (incluindo indígenas). Assim, até mesmo a parca mão de obra admitida das cidades mais caboclas da região do Contestado (Matos Costa, Calmon, Timbó Grande, Lebon Régis – Trombudo do Contestado –, e ainda dentre os pobres de Caçador, Videira, Joaçaba etc.), para o plantation de pinus ou colheita da cebola, de maça, de alho e tomate, vem perdendo espaço e, com ele, as perspectivas de futuro.
A troca da nomenclatura turística não é um fato isolado, pois tem como base um discurso regional sobre os caboclos e as caboclas serem vagabundos/as e preguiçosos/as para o trabalho. Isso demonstra a falta – nesse longo período de pouco mais de cem anos desde o fim da Guerra – de políticas públicas que amenizassem essa relação e gerassem condições para que a população cabocla fosse inserida regionalmente. A permanência da retórica de que o colono de descendência europeia é trabalhador e de que o caboclo é preguiçoso manteve o caboclo enterrado na marginalização regional, sem acesso à terra, ao trabalho tecnificado e digno e, mesmo, ao ensino médio e técnico, mas, principalmente, o superior.
No ensino médio e no superior burgueses regionais, a cultura cabocla é quase que completamente invisível. Mesmo com o advento de redes de ensino público em algumas cidades da região, instaladas durante os governos progressistas recentes, o Contestado caboclo ainda é trazido com forte apelo exótico, pois as instituições de ensino seguem burguesas e não populares – mesmo que isso não se restrinja apenas à região do Contestado.
A pequena burguesia e as elites regionais, na sua maioria, não aceitam a cultura cabocla, muito menos os movimentos e ações culturais voltados para valorização e ressignificação socioterritorial cabocla. Mas há pequenos grupos lutando regionalmente para a valorização e o espaço do povo tradicionalmente caboclo nessa região catarinense. Não se duvida de que a invisibilidade tenha sido imposta pela perseguição aos caboclos e às caboclas e, em virtude disso, sua cultura tenha sido silenciada em quase todo o território cultural caboclo por mais de cem anos, principalmente, desde que suas terras foram dadas em concessão às companhias colonizadoras e, primeiramente, para a construtora da EFSPRG.
Nesse sentido, o Contestado Caboclo segue clamando por justiça social, principalmente no que se refere ao direito à terra que lhes foi usurpada, garantindo, desta forma, o direito à vida sobre suas terras ancestrais.
Antes do extermínio do Vale do Contestado como “produto” turístico catarinense, a Santa Catarina Turismo S/A (SANTUR) assim o aclamava no seu site oficial, falando da guerra, mas não falando do povo caboclo, ou seja, as gentes caboclas já não prestavam para as divulgações turísticas oficiais:
a região do Vale do Contestado foi palco de um dos maiores conflitos sociais da história do país. A Guerra do Contestado (1912-1916) colocou de lados opostos os camponeses e o Governo Federal da época, resultando em confrontos sangrentos que levaram a vida de mais de 5 mil pessoas. A memória da guerra encontra-se preservada em museus, monumentos, sítios históricos e espaços de peregrinação religiosa, principalmente nos municípios de Caçador, Irani, Fraiburgo, Curitibanos e Canoinhas (SANTUR, GUIA DE TURISMO, VALE DO CONTESTADO, 2019, s/p.).
Como tentamos demonstrar nesse ensaio, a ainda pouco conhecida Guerra do Contestado, um dos maiores conflitos socioterritoriais da América Latina, buscou eliminar toda a população tradicional cabocla da região, abrindo espaço para a recolonização a partir da entrada de imigrantes de origem europeia, inicialmente alemães e italianos e, na sequência, de eslavos. Mas, passados pouco mais de cem anos dessa guerra, há numerosos caboclos e caboclas que seguem lutando pelo direito à terra ocupada por seus ancestrais. Muitos desses e muitas dessas vivem na periferia das pequenas cidades do Contestado, outros são explorados nos latifúndios e, alguns, estão acampados ou assentados e ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, por conta disso e de outros fatores estruturais ligados às parcas políticas públicas estaduais e federais, essa região possui os mais baixos índices de desenvolvimento humano de Santa Catarina, ou mesmo do Brasil, pois o índice de pobreza nos municípios da região do Contestado varia entre 20 e 48% da população residente (FRAGA, 2005, 2006, 2009, 2010, 2011, 2012, 2016 e 2017). Mas os baixos índices de qualidade de vida atingem, principalmente, a população cabocla, vivendo em melhores condições os de descendência europeia.
Para Seyferth (2002, p. 120), a imigração europeia estava naturalizada no debate sobre a colonização e nele, negros e mestiços (aqui se pode incluir o povo caboclo), livres ou escravos, só eventualmente surgem como atores sociais descartáveis sob um argumento simplista – o do indireto restabelecimento do tráfico – e são “Os alvos de um imaginado processo civilizatório conduzido pelos europeus” (p.138). Porém, Renk (1991) defende que a introdução de valores externos deu aos caboclos duas opções: adaptarem-se ou ficarem excluídos. Mas adaptar-se seria desestruturar o modo de vida secular da população, esbarrando ainda no descompasso criado entre o habitus da população e as estruturas econômicas introduzidas com a colonização. Às companhias interessava a venda da terra às pessoas de boa qualidade como forma de obter lucros, o que exigiu a seleção de compradores e retirada de pessoas ou grupos que pudessem comprometer o empreendimento, exigindo a posse da terra, por exemplo.
Se desde a chegada de levas de imigrantes europeus a região do Contestado caboclo segue clamando por justiça social, principalmente com relação ao direito à terra, garantindo o direito à vida sobre seu chão ancestral, é urgente apontar o (novo) assassinato do “querido” Contestado com a criação do vale dos imigrantes. No Contestado, os descendentes dos sobreviventes caboclos do genocídio do início do século XX seguem em guerra, o Contestado segue em uma guerra ininterrupta desde 1912 e o Estado permanece distante como outrora, pois suas políticas públicas para a região são ineficientes e, mesmo, nulas desde o início desta guerra pela vida e pela existência.
Há, nas sombras das sociedades que compõem a região do Contestado, “europeus” e não europeus, mesmo se sabendo que hoje são todos brasileiros e brasileiras, uma discussão sobre grupos e identidades étnicas regionais, sobretudo dos que possuem maior valor e menor valor social, e isso ainda está estabelecido pela cor da pele, pelos grupos de origem comum e de cultura comum – a cultura cabocla, mais antiga/originária e a europeizada, esta última a mais recente, que, pela força do destino, são obrigadas a interagir em uma terra comum, entre contrastes e insignidades.
A força dos brancos-europeizados foi responsável pela morte do Vale do Contestado, pois o termo Contestado representa, inexoravelmente, toda uma base de formação socioterritorial à parte de gentes pretas mescladas com indígenas e portugueses e espanhóis de longa data, ou seja, as gentes caboclas.
O Contestado segue matando o Contestado a partir do preconceito de certos grupos dominantes, mas enquanto eles atiram de um lado, o povo caboclo vem se levantando e expondo a força da sua cultura, com a bravura e a resistência que herdaram de guerreiros e guerreiras da Guerra do Contestado, em eventos tais como as Semanas do Contestado, no Coração do Contestado.
Mas há uma saída para tal situação que humilha e aniquila a cultura cabocla e não precisa ser, necessariamente, a Região Turística Caminhos do Contestado, que foi oficializada e reconhecida pelo Ministério do Turismo como parte integrante do Mapa Turístico do Brasil (2019-2021) no dia 26 de agosto de 2019. Mesmo sendo uma região turística que carrega o nome do Contestado, ela não consegue congregar e divulgar a cultura cabocla, apenas fragmentos que se encontram em algumas cidades, tais como Matos Costa, Calmon e Timbó Grande, dentre os 13 municípios que fazem parte.
Dos municípios que fazem parte do Caminhos do Contestado, apenas Itaiópolis, Mafra, Porto União e Major Vieira cumpriram todos os requisitos exigidos pelo Ministério do Turismo, mas o Caminhos do Contestado deveria abrigar outros, caso a cultura cabocla fosse de fato valorizada, em detrimento da europeia, com forte apelo para a eslava. Enquanto a cultura cabocla não recebe o destaque equivalente ao dado à colonização europeia, segue-se lutando pelo reconhecimento e acolhimento dessa parcela da população regional em um mapa real do turismo regional e nacional.
Dessa forma, urge criar um consórcio municipal turístico das cidades mais caboclas do Contestado: Lebon Régis, Matos Costa, Timbó Grande e Calmon, podendo ainda incluir Santa Cecília, pois eles congregam a maior parte dos sítios históricos de batalhas, de redutos e da cultura cabocla do Contestado. Isso fortalecerá esses municípios e abrirá possibilidades de criação conjunta de produtos turísticos ligados à guerra e ao mundo caboclo, incluindo os espaços sagrados do Monge João Maria.
Assim, mesmo que alguns municípios façam parte de outros roteiros oficiais, nada os impede de fortalecerem e atraírem os turistas que buscam pela cultura cabocla e as marcas da maior guerra civil ocorrida em solo brasileiro. Dessa forma, é possível pensar na roteirização desses municípios caboclos a partir dessas possibilidades: Trilhas da Guerra do Contestado, Monge João Maria e Cultura Cabocla, ou Rota Turística da Guerra do Contestado: lugar da cultura cabocla e do Monge João Maria. Turistificar uma região é um desafio que envolve planejamento e, claro, os atrativos, e isso eles possuem. Desde as paisagens montanhosas sobre o Planalto catarinense, passando pelos locais de combates e redutos de resistências, sem esquecer de que em todos eles, há numerosos espaços sagrados da passagem do Monge João Maria, no século XIX, com águas santas e argilas que atraem milhares de pessoas anualmente para esses lugares. Mas há a gastronomia cabocla, a hospitalidade e o receber bem, típico desse povo, associado ao fato de se estar numa das regiões mais frias do país.
Tudo isso deve ser pensado e constar da proposta de planejamento turístico para esses municípios, pois se enquadra como trunfo de reconhecimento da cultura secular cabocla, da resistência dos seus antepassados, que sobreviveram à maior guerra vivida em solo nacional, sobre um território impregnado de locais que são testemunhas da própria formação socioterritorial sulista e nacional. Assim se rompe a invisibilidade cabocla, fazendo-a coexistir numa região cujo capital se encontra nas mãos de grupos predominantemente de origem dos colonizadores europeus do pós-guerra e, vendendo sua história e sua cultura, se gerará trabalho, renda e riqueza para as populações de origem cabocla do Contestado.
O Contestado e a cultura cabocla estão sendo aniquilados desde o início do século XX, mas é possível, a partir da própria negação da sua existência na região, fazer disso um trunfo de resistência, como se tem acompanhado a partir das Semanas do Contestado, que demonstram a enorme capacidade dessa gente de se fazer existir por meio de atividades culturais, artísticas e esportivas.
É chegada a hora de Lebon Régis, Matos Costa, Calmon e Timbó Grande, os maiores herdeiros do Contestado e da cultura cabocla, se unirem e mostrarem ao Brasil e ao mundo o real significado da história de luta de um povo que combate há mais de cem anos contra todas e todos que lhes querem fazer sumir do mapa catarinense enquanto população tradicional. É a hora e a vez da cultura cabocla ser reconhecida, valorizada e respeitada, e essa revolução acontece de dentro para fora, a partir do território de sonhos e anseios das quatro irmãs caboclas do Contestado.
Referências
ATA DA ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DA INSTÂNCIA DE GOVERNANÇA DO VALE DO CONTESTADO, Catanduvas, SC, 2019.
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FRAGA, Nilson Cesar. Contestado em guerra: 100 anos do massacre insepulto do Brasil. Florianópolis: Insular, 2012.
FRAGA, Nilson Cesar. Contestado, o território silenciado. Florianópolis: Insular, 2009.
FRAGA, Nilson Cesar. Contestado: A grande Guerra Civil Brasileira. In ______. Paraná Espaço e Memória. Diversos olhares histórico-geográficos. Curitiba: Editora Bagozzi, 2005.
FRAGA, Nilson Cesar. Contestado: cidades, reflexos e coisificações geográficas. Florianópolis: Insular, 2016.
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FRAGA, Nilson Cesar. Território e silêncio. Contributos reflexivos entre o empírico e o teórico. In FRAGA, Nilson Cesar. (Org). Territórios e Fronteiras: (Re) Arranjos e Perspectivas. Florianópolis: Insular, 2011.
FRAGA, Nilson Cesar. Vale da Morte: o Contestado visto e sentido. Entre a cruz de Santa Catarina e a espada do Paraná. Blumenau: Ed. Hemisfério Sul, 2010.
FRAGA, Nilson Cesar. Turismo de Guerra: a possibilidade de novo tipo de turismo para o Brasil. Marco Inicial – Guerra do Contestado (1912-1916). Curitiba: Revista PerCurso – Curitiba em Turismo, a. 1, n. 1, p. 43-76.
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RENK, Arlene. A colonização do oeste catarinense: as representações dos brasileiros. Cadernos do CEOM, ano 19, n. 23, p. 221-258, 1991.
SANTUR – VALE DO CONTESTADO – DESCUBRA SANTA CATARINA. Disponível em: <http://turismo.sc.gov.br/destinos/vale-do-contestado/>, acessado em 17 de julho de 2019.
SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. REVISTA USP, São Paulo, n. 53, p. 117-149, março/maio 2002.
Nilson Cesar Fraga é pesquisador do CNPq – PQ
Universidade Estadual de Londrina – Geociências
Coordenador do Laboratório de Geografia, Território, Meio Ambiente e Conflito
Coordenador do Observatório da Região e da Guerra do Contestado

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