4/23/2017

HORA DO ÂNGELO: Boê(miando)

    Fazia frio, mas o colete de lã e o sobretudo me aqueciam. Também contribuía, a dose de conhaque São João da Barra que elevava a temperatura do meu esôfago e incendiava o meu estômago. A garoa de Curitiba, tão clássica, desde os tempos áureos, me molhava aos poucos. Era preciso caminhar.

    Muito antes de falarem que a caminhada é benéfica para o corpo, razão pela qual as madames se sacrificam todas as tardes com suas calças legging e suas garrafas de água da Tupperware pelos passeios da cidade, eu já sabia que caminhar fazia bem para o corpo e para a mente. Quase todas as noites, eu dispensava os ônibus vermelhos e lotados para caminhar pelas ruas em companhia de minha sólida solidão.

     Talvez fossem os caminhos que me libertassem dos cativeiros da vida, embora sempre buscasse a liberdade nas doses de conhaque e nas músicas já consagradas na boemia. Mal eu sabia o que era a liberdade, assim como a maior parte das pessoas. Mas o que importava era a busca incessante por ela, a qual por muitos era chamada de libertação.

     Morava sozinho, não tinha que dar explicações a ninguém, a não ser a mim mesmo, porém mesmo os desconhecidos com frequência se importavam comigo e quando eu passava dos limites nas doses de conhaque, diziam que eu estava "miando de bêbado". O que restava a mim, um boêmio com mais de quarenta? Talvez o futuro me reservasse dias brilhantes, com o sol evaporando o orvalho das flores de papoula, ao som de Beatles ou quiçá a dama de filmes, que no passado a tive e como sina a perdi?

     O meu bom emprego, minha renda superior à média da população e os nacos de herança guardados no Banco do Brasil me davam condições de andar com um bom carro, frequentar os requintados restaurantes ou simplesmente me maquiar, tirando assim a minha barba e a minha identidade. Mas nada disso me mudava, ainda preferia o sobretudo sem engomar, a minha caminhada na noite, o velho guarda-chuva e o requinte do bar. Nunca consegui descobrir o que era a felicidade, assim como a maior parte das pessoas, mas estava convicto de que ela residia nas coisas simples e não na maquiagem.

       Até os paralelepípedos de diabásio sabem o quanto sou mal falado, mas os boatos me incomodam menos que uma mosca que insiste em pousar sobre meu copo de conhaque. Por insistir em preservar minha identidade, evitar minha exposição e deixar meu legado que deixei de me preocupar com o que falavam ou deixavam de falar. Dias atrás, encontrei um pneu velho na beira de um rio, levei-o para casa, pintei, enchi de terra e plantei alguns pés de Clorofito, em homenagem às madames da cidade, já que na terra de onde venho chamam esta amigável plantinha de "língua de serpente". Quanta maldade com as jararacas, urutus, corais e cotiaras, cada vez mais ameaçadas de extinção.

     Além de gostar de caminhar, confesso que gosto do frio. Acho bonito ver esfumaceada a lâmina d' água do lago do parque, assim como os plátanos, ácer e liquidâmbares mudando a tonalidade das cores de suas simétricas folhas, que de verde se tornam amarelas, depois alaranjadas e mais tarde vermelhas até caírem. Gosto do inverno pela cor das geadas, pelo sabor do pinhão, pelas madrugadas com ventos cortantes e pelo efeito do conhaque nos meus ricos e pobres dias de solidão.

    Me dói nas noites curitibanas, a busca pelo preenchimento dos vazios; a face triste como as retratadas por Sebastião Salgado, de quem não tem o que comer e as bocas mudas dos adolescentes que preferem teclar ao invés de conversar. Mas, assim como a arnica, meus textos aliviam estas dores, por isso perdi as contas de quantas canetas Bic já gastei, tentando combinar letras, palavras e pontuações. Insisto em pontuar com exclamações, mas por sina me resta sempre uma interrogação. Por que?

por Ângelo Carpatus (que escreve semanalmente neste blog)
    
     

     
  

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