Derrubaram tudo: nossas casas, o Posto de Saúde e a igreja. Tudo foi derrubado, inclusive a esperança de alguns dos nossos
* Dr. Rosinha
Todos os dias por vinte e cinco anos eu sabia, ao amanhecer, onde estava. Sabia, ao sair da cama, onde estava colocando meus pés e sabia o que fazer durante todo o dia. Sabia o caminho à caminhar e a labuta à labutar.
Todos os dias sabia qual era o meu trabalho e ao termina-lo, sabia para onde ir: voltava para casa, comentava com a família alguma coisa do que tinha feito, tratava dos animais, tomava banho, comia a comida, fruto do meu trabalho e do trabalho da minha família, deitava na minha cama e dormia pensando nos fazeres do dia seguinte, no futuro dos meus filhos e netos. Assim foi passando o tempo, assim foram passando os vinte e cinco anos. Assim, com muita luta e trabalho foi construído nossas vidas. Vidas de pobres, honrados e trabalhadores.
Em vinte e cinco anos, saímos (eu e minha família) de um barraco para uma casa, que para mim e para a minha família era boa. Melhor ainda, uma casa que foi construída por nós mesmos.
Nestes vinte e cinco anos vi, aqui na Comunidade, gente nascer e gente morrer. Aqui nasceu gente que hoje é casada com gente daqui mesmo e já tem filhos. Vinte e cinco anos vivendo aqui e não indo além da cidade, aonde vamos para vender nossa pequena produção e comprar o que precisamos.
Vinte e cinco anos, eu e todos da minha comunidade fazendo o mesmo trajeto: ocupar um terreno vazio, só de mato e quiçaça e dele tirar a comida, educar os nossos filhos e filhas e com dificuldade colocar na escola.
Nestes vinte e cinco anos, aqui nasceu meus meninos e meninas, estudaram, trabalharam comigo e aqui vivem. São vinte e cinco anos de convívio. Temos aqui nossos compadres e comadres, nossa benzedeira e a parteira. Aqui muitos nasceram de parto, em casa.
Nestes vinte e cincos anos construímos nossas casas, nosso Posto de Saúde, nossa igreja, nossas amizades, claro, também há algumas diferenças entre nós, nem tudo é paraíso, e construímos também nossos costumes e cultura.
Alguns dias de algumas semanas e em alguns dias Santos, temos terços e novenas. Aos domingos, a missa, a roda de chimarrão, o futebol, a ida até o rio e a pescaria. Mesmo aos domingos algumas das tarefas diárias: o tirar leite, tratar dos animais e, quando não chovia, regar a horta.
Assim fomos passando nestes vinte e cinco anos: do nada a alguma coisa, da miséria do nada ter a não ser a força de trabalho a um pouco de vida digna.
Foi anos de altos e baixos, de alegrias e tristezas, de desesperança a retomada do sonho, do quase desistir (alguns desistiram) ao resistir, até que agora depois de vinte e cinco anos, quando imaginávamos, apesar das dificuldades, algum sossego, chega dia primeiro de dezembro deste ano. Primeiro de dezembro de 2017, nunca vou esquecer. Como todos os dias, por vinte e cinco anos eu sabia onde estava. Sabia, ao sair da cama, onde estava colocando meus pés e sabia o que fazer durante o dia. Sabia o caminho à caminhar e a labuta à labutar. Sabia, até que a policia chegou e junto algumas máquinas que começaram a derrubar nossas casas. Derrubadas sem que pudéssemos tirar tudo de dentro delas. Eu mesmo perdi muita coisa e pior, minha casa era financiada. Agora não tenho casa, não tenho roça, não tenho onde morar, não tenho dinheiro e tenho divida para pagar. Pior, não tenho mais idade para retomar toda a luta que fiz nestes vinte e cinco anos e se tivesse, sinto que meu sonho e minha esperança foram derrotados.
Depois de vinte cinco anos de lutas e dificuldades, com filhos e netos para criar e educar, quando pensava que nada mais de ruim poderia acontecer, veio a policia e alguns homens com máquinas e pôs tudo abaixo. Derrubaram tudo: nossas casas, o Posto de Saúde e a igreja. Tudo foi derrubado, inclusive a esperança de alguns dos nossos.
Escrevi este texto após visitar a Comunidade do Alecrim em Pinhão. Escrevi-o após ouvir inúmeros moradores e moradoras da Comunidade que tiveram suas casas demolidas e foram expulsos da terra que ocupavam a vinte e cinco anos.
Antes da visita, dia 17, assisti a missa, rezada debaixo de uma barraca de lona preta e em seguida visitei o local onde as casas, o Posto de Saúde e a igreja foram destruídos.
A família Zattar, que alega ser o proprietário das terras e que obteve da nossa injustiça brasileira o direito a terra, que não necessita, é conhecida como aquela que sempre enganou os posseiros para tirar deles a terra.
Sai dali pensando no povo e surgiu na minha mente o alecrim, seu cheiro e o recado que o Chico Buarque dá na sua canção ‘Tanto Mar’.
Pensei no ‘Tanto Mar’ e me perguntei: porque os ricos, os poderosos, sem deixar de fora (a polícia) o braço armado do Estado e o Poder Judiciário causa tanto mau ao povo trabalhador? Daí o título ‘Tanto Mau’.
Chico canta: Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / Ainda guardo renitente / um velho cravo para mim // Já murcharam tua festa, pá / Mas certamente / Esqueceram uma semente / n’algum canto de jardim // … // Canta primavera, pá / Cá estou carente / Manda novamente / algum cheirinho de alecrim.
A polícia e os homens da família Zattar destruíram tudo, mas “esqueceram uma semente n’algum canto do jardim” e esta semente brotou. A vocês que (brotaram) voltaram a ocupar a terra do Alecrim peço: assim que produzir, mande um cheirinho para mim.
*Dr. Rosinha é médico, ex-deputado federal e presidente do PT-PR
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